22.4.04

O Que Substituiria a Bíblia Como Um Guia Moral?
Robert G. Ingersoll
Perguntam para mim o que "substitui a Bíblia como guia moral".
Eu sei que muitas pessoas têm a Bíblia como o único guia moral e acreditam que nesse livro somente pode ser encontrado a verdade e o perfeito padrão de moralidade.
Existem muitos preceitos bons, muitos provérbios sábios e muitas regras e leis excelentes na Bíblia - e estes estão misturados com preceitos péssimos, provérbios tolos, com regras absurdas e leis cruéis.
Porém nós temos que lembrar que a Bíblia é uma coleção de muitos livros escritos durante séculos, e estes representam em parte o desenvolvimento e contam em parte a história de um povo. Precisamos lembrar, inclusive, que seus escritores tratam de uma ampla variedade de assuntos. Vários desses autores não têm nada a declarar sobre o certo e o errado, sobre vícios e virtudes.
O livro do Gênesis não possui nada sobre moralidade. Não há nele nenhuma linha calculada para iluminar o campo de nossa conduta. Ninguém pode chamar este livro de guia moral. Ele é uma criação do mistério e do milagre - da tradição e da lenda.
No livro do Êxodo encontramos uma explicação de como Jeová entregou os judeus à escravidão dos egípcios.
Nós atualmente sabemos que os judeus jamais foram escravizados pelos egípcios, que esta história toda nada mais é do que uma ficção. Nós sabemos disso porque não há no hebraico uma palavra de origem egípcia, e não foi encontrada na língua egípcia um vocábulo sequer derivado dos judeus. Baseados nesse fato, inferimos que os hebreus e os egípcios não poderiam ter convivido juntos durante séculos.
Certamente o livro do Êxodo não foi escrito para o ensino de moralidade. Você não é capaz de encontrar nenhuma palavra contra a escravidão humana – como questão de fato, Jeová foi um crente nesta instituição.
A matança do gado com doenças e granizo – o assassinato dos primogênitos, que em todos os lares foram mortos, – porque o rei recusou-se a deixar os judeus partirem, certamente não foi algo moralmente correto – na realidade, foi demoníaco. O autor deste livro considerava todo o povo do Egito – suas crianças, suas manadas e seus rebanhos – como propriedades do Faraó, e este povo e gado foram mortos, não porque fizeram algo de errado, mas simplesmente pelo propósito de punir o rei. É possível extrairmos alguma lição moral desta história?
Todas as leis encontradas no Êxodo – incluindo os Dez Mandamentos – tão longe do que é realmente bom e sensato, estão neste instante imperando com força entre pessoas de todo o mundo.
Assassinato é, e sempre foi, um crime, e sempre o será, enquanto a maioria da população objetar a ser assassinada.
A diligência sempre foi e sempre será a inimiga do latrocínio.
A natureza do homem é tal que ele admira o professor da verdade e rejeita o divulgador da mentira. Entre todas as tribos - entre todas as pessoas - o ensino da verdade é considerada uma virtude e um juramento falso ou pronunciamento falacioso, um vício.
O amor dos pais pelos filhos é espontâneo, e este amor é encontrado entre todos os animais que vivem. Então o amor do filhos pelos pais é natural, e não existiu, tampouco pode ser criado por lei. O amor não brota de um senso de dever, tampouco floresce curvado à obediência de comandos.
Dessa forma, os homens e as mulheres não são virtuosos por coisa alguma que há nos livros ou credos.
De todos os Dez Mandamentos, os que eram bons eram antigos, foram o resultado da experiência. Os mandamentos de Jeová que foram originais eram tolos.
A fabricação de "um outro Deus" não poderia ser pior do que a fabricação de Jeová, e nada poderia ser mais absurdo quanto à sacralidade do sábado.
Se os mandamentos fossem contra a escravidão e poligamia, contra guerras de invasão e extermínio, contra a perseguição religiosa sob todas as formas, então o mundo poderia ser livre, então a mente poderia ter-se desenvolvido e o coração civilizado, então nós poderíamos, com propriedade, chamar os mandamentos de "guia moral".
Antes de podemos dizer com propriedade que os Dez Mandamentos constituem um guia moral, é imperioso que adicionemos e subtraiamos elementos dele. Devemos arrancar alguns mandamentos, e escrever outros em seus lugares.
Os mandamentos que possuem uma conhecida aplicação aqui, neste mundo – que contemplam os compromissos humanos – são sábios, os outros não têm bases em fatos, ou experiência.
Muitos dos regulamentos encontrados no Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio são excelentes. Muitos são absurdos e cruéis.
Toda a solenidade dessas invenções é insana.
A maior parte das punições prescritas para as violações de leis não são filosóficas e são brutais... A realidade é que o Pentateuco dá base a quase todos os crimes, e classificá-lo de guia moral é um absurdo tanto quanto declarar que ele é misericordioso ou verdadeiro.
Nada da moral natural pode ser encontrado em Josué ou nos Juízes. Estes livros estão repletos de crimes – com massacres e assassinatos. Parecem-se, em larga medida, com a história real dos índios Apache.
A história de Rute não é particularmente moral.
Em Samuel I e II não há uma palavra calculada para desenvolver o cérebro ou a consciência.
Jeová matou setenta mil de judeus porque David fez um censo. David, segundo o relato, foi o único culpado, porém somente os inocentes foram mortos.
Em Reis I e II nada que tenha valor ético pode ser encontrado. Todos os reis que recusaram obediência aos sacerdotes foram denunciados, e todos os cruéis coroados que assistiam os sacerdotes, foram declarados serem os favoritos de Jeová. Nestes livros nada pode ser encontrado a favor da liberdade.
Existem alguns salmos sábios, e há alguns que são infames. A maior parte destes salmos são tolas. Muitos deles consistem de apelos passionais à vingança.
A história de Jó choca o coração de qualquer homem bom. Neste livro encontra-se alguma poesia, e alguma filosofia, mas a história deste drama denominado Jó, é desalmada ao mais alto grau. As crianças de Jó foram assassinadas para satisfazer uma pequena aposta entre Deus e o Diabo. Mais tarde, tendo Jó permanecido firme, outras crianças foram colocadas na distinção de 'seres assassinados'. De qualquer modo, nada foi feito pelas crianças que foram assassinadas.
O livro de Ester é completo absurdo, e a única característica que redime o livro é que o nome de Jeová não é mencionado.
Eu aprecio o cântico de Salomão porque ele consiste num conto de amor humano, e este é somente o que eu posso compreender. Este livro em meu julgamento é mais digno do que todos que o precedem, e um guia moral muito superior.
Existem alguns provérbios sábios e clementes. Alguns são egoístas e outros são insípidos e vulgares.
Eu gosto do livro do Eclesiastes porque lá você encontra algum bom senso, alguma poesia, e alguma filosofia. Jogue fora as interpolações e aí está um bom livro.
Claro que não há nada em Neemias ou Esdra para tornar o homem melhor, nada em Jeremias ou Lamentações calculado para atenuar os vícios, e somente poucas passagens de Isaías podem ser utilizadas em prol de uma boa causa.
Em Ezequiel e Daniel encontramos somente delírios de insanos.
Em alguns dos profetas menores existe um pouco de versos sábios – aqui e ali encontramos um pensamento elevado.
Você pode, através de uma seleção de trechos de diferentes livros, obter um credo excelente – e, selecionando passagens de outros, - construir um péssimo credo.
A questão é que o espírito do Velho Testamento, sua inclinação, seu temperamento – é degradante, egoísta e cruel. As coisas mais demoníacas são comandadas, recomendadas e aplaudidas.
As histórias que são contadas de José, de Elias, de Daniel e Gideão – e de muitos outros – são hediondas; diabólicas.
Na sua íntegra, o Antigo Testamento não pode ser considerado um guia moral.
Jeová não foi um Deus moral. Ele possuía todos os vícios, e carecia de todas as virtudes. Ele geralmente executava Suas ameaças, mas Ele não permaneceu fiel às Suas promessas.
Ao mesmo tempo, devemos ter em conta que o Antigo Testamento é uma produção humana, que foi escritos por selvagens que que ensaiavam os primeiros passos rumo à civilização. Devemos dar créditos às coisas nobres que ele afirmaram, e devemos ser caridosos o suficiente para desculpar suas faltas e relevar todos os seus crimes.
Eu sei que muitos cristãos encaram o Velho Testamento como a fundação e o Novo como a "superestrutura", e enquanto muitos admitem que há muitas falhas e erros no Antigo Testamento, também insistem que o Novo é a flor e o fruto perfeito.
Admito que existem muitos preceitos excelentes no Novo Testamento, e se você subtrair deste livro os dogmas da dor eterna, da vingança infinita, da expiação, do sacrifício humano – da necessidade de derramamento de sangue – se lançar por terra a doutrina da não-resistência, de amarmos os inimigos, a idéia de que a prosperidade é a conseqüência do pecado, que a miséria é a preparação para o Paraíso, se lançar por terra e selecionar as sábias e sensíveis passagens – aplicáveis à nossa conduta – então você poderia construir um justo e sensato guia moral – limitado, mas moral.
É evidente que muitas coisas importantes ficariam de fora. Você não teria nenhum preceito quanto aos direitos humanos, nada em favor da família, nenhuma palavra sobre a educação, nenhuma instilação de espírito investigativo – para o pensamento e a razão –, mas ainda sim teria um guia moral sábio e justo.
Na outra mão, se você tivesse os trechos tolos – aqueles mais insensatos – você poderia confeccionar um credo capaz de satisfazer um asilo de insanos.
Se você pegar as passagens cruéis – os versos que inculcam o ódio eterno – versos que se enroscam e sibilam como serpentes – você poderá obter uma doutrina capaz de chocar o coração de uma hiena.
Pode ser que nenhum livro contenha passagens melhores do que as do Novo Testamento – mas certamente nenhum livro contém piores.
Sob o desabrochar do amor você encontra o espinho do ódio – nos lábios que beijam, você encontra o veneno de uma cobra.
A Bíblia definitivamente não é um guia moral.
Qualquer homem que segue fielmente todos os seus ensinamento é um inimigo da sociedade e irá provavelmente terminar os seus dias numa prisão ou num asilo.
O que é moralidade?
Neste mundo nós precisamos de certas coisas. Possuímos muitos desejos – somos expostos a muitos perigos. Precisamos de alimento, combustível, vestuário e abrigo, e juntamente com esses desejos, existe o que pode ser denominada "a ânsia de pensar".
Somos condicionados – e nossa felicidade depende dessas condições. Existem certas coisas que reduzem – outras que incrementam – nosso bem-estar. Há certas coisas que destroem e outras que o preservam.
Felicidade, incluindo as suas mais elevadas formas, é sobretudo a melhor das coisas, e qualquer ação cujo resultado é produzir ou garantir felicidade, é boa – em outras palavras, moral. Qualquer coisa que destrói ou reduz o bem-estar é ruim – em outras palavras, imoral. Em outras palavras, tudo o que é bom é moral, e tudo que é mal é imoral.
Então o que é, ou pode ser chamado de guia moral? A resposta mais curta é apenas uma palavra: inteligência.
Nós queremos a experiência da humanidade – a história real de nossa espécie. Desejamos a história do desenvolvimento intelectual – o florescer da ética – da idéia da justiça – da consciência – da caridade – da abnegação. Almejamos conhecer as estradas e os caminhos percorridos pela mente humana.
Estes fatos em geral – os delineamentos dessas histórias – os resultados obtidos – as conclusões formadas – os princípios envolvidos – analisados em conjunto, consistiriam no melhor guia moral concebível.
Não podemos depender dos denominados "livros inspirados", ou nas religiões do mundo. Estas religiões são fundamentadas no sobrenatural, e de acordo com elas estamos obrigados a venerar e obedecer a comandos ou princípios sobrenaturais. Todas essas religiões são inconsistentes com a liberdade intelectual. São as adversárias do pensamento, da investigação, da honestidade mental. Elas destroem a natureza do homem. Elas prometem recompensas eternas para a credulidade – para a crença – para o que chamam de 'fé'.
Essas religiões ensinam virtudes de escravos. Elas transformam coisas inanimadas em sagradas, e falsidades em dogmas veneráveis. Elas criam crimes artificiais. Comer carne na sexta-feira – divertir-se aos sábados – comer nos dias de preceito – ser feliz na Quaresma – debater com um sacerdote – perguntar pela evidência – renegar um credo – expressar seu pensamento honesto – todos esses atos são pecados – crimes contra algum deus. Emitir sua opinião sincera sobre Jeová, Maomé ou Cristo é muito pior do que maliciosamente caluniar o seu próximo. Questionar ou duvidar de milagres é infinitamente pior do que rejeitar fatos conhecidos. Somente os obedientes – os crédulos – os tementes – os ajoelhados – os dóceis – os que não questionam – os verdadeiros crentes – são reconhecidos como morais, como virtuosos. Não é suficiente ser honesto, generoso e prestativo; não é suficiente ser regido pela evidência, por fatos. Além disto, precisamos crer. Essas doutrinas são inimigas da moralidade. Elas subvertem todas as concepções naturais de virtude.
Todos os "livros inspirados", ensinando quais mandamentos sobrenaturais são corretos – e corretos porque são ordenados – e quais proibições sobrenaturais são errôneas – e errôneas porque proibidas – são absurdamente não filosóficos.
E todos os "livros inspirados", ao ensinar que somente aqueles que obedecem os comandos sobrenaturais são – ou podem ser – realmente virtuosos, e que a fé resguardada sem dúvidas será recompensada com delícias eternas – são grosseiramente imorais.
Novamente eu declaro: a inteligência é o único guia moral.

de onde tirei...

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